NO LO TIRO, LO REGALO

Hoje escrevo do meu cómodo e privilegiado lugar no mundo, com o coração apertado, mas com os pés no chão. Assumir o privilégio é meio caminho andado para nos conseguirmos pôr no lugar dos outros, simplesmente porque sabemos reconhecer o nosso.

Há quem pense que o privilégio se conquista, e é possivel que assim seja em alguns casos, mas seguramente é muito maior a percentagem de pessoas privilegiadas, que o são devido às circunstâncias totalmente aleatórias da vida. Os principais factores são obviamente o sítio onde nascemos e crescemos, as oportunidades e possibilidades dentro do meio familiar e só depois as nossas escolhas e mérito próprio.
A vida não é igual para uma pessoa europeia, e para uma africana. A vida não é igual para uma pessoa com papeis e uma ilegal. E tantos outros exemplos que poderia dar.

Hoje escrevo sobre isto porque há uns dias, aconselhada por um amigo, entrei num grupo de facebook que se chama: “No lo tiro, Lo regalo”, que em português seria: “Não deito fora, ofereço-o”. Tinha algumas coisas do Tom que já não usava, perguntei a umas amigas e conhecidas se queriam, e depois de várias respostas negativas, continuavam aqui em casa sem destino.

Tenho uma boa rede de amigas que me passam a roupa dos filhos e a quem eu ou devolvo, ou passo para a próxima. Temos um sistema perfeito que faz com que a roupa que foi usada tão pouco tempo, circule e se reutilize. Dá imenso jeito e sou totalmente agradecida.
Mas há coisas que todas temos, aquelas coisas que consideramos básicas: o carrinho, a alcofa, o ovo, a cadeirinha, o ginásio, o sling, o portabebé, a mochila, e por aí adiante.

O universo do bebé não tem fim na sociedade de consumo, impingem-nos mil coisas supostamente imprescindíveis, mas que têm três ou quatro meses de vida útil e depois ou se vendem ou são esquecidas nas caves e sótãos das casas. Se começamos a pensar em tudo isto, é bastante absurdo e talvez agora eu fizesse muita coisa diferente.

Menos de uma hora depois de ter posto o anúncio das coisas que tinha para dar no facebook, voltei a olhar para o telemóvel. Tinha 64 mensagens diferentes a pedir para virem buscar as coisas.
Ao princípio quando comecei a ler, caiu-me a alma aos pés. Não é que não soubesse como a vida pode ser difícil para tanta gente, mas foi dar-me conta de como ignoramos outras realidades que vivem tão perto de nós, só porque o privilégio nos distrai das prioridades e é tão mais fácil e cómodo andar pela vida em torno do nosso umbigo.

Tinha mensagens de mães com bebés de poucos meses e que ainda não tinham carrinho, tinha mensagens de avós desempregadas que não puderam comprar absolutamente nada para o neto recém-nascido. Mães de gémeos que não tinham a possibilidade de comprar tudo a duplicar.
Eu nem sabia bem o que responder perante todas aquelas histórias, os desabafos, os desesperos, as fotos que enviaram dos filhos, os “dios te bendiga”. Ao combinar para virem buscar o que tinha, algumas pessoas tiveram que organizar a minha disponibilidade com o horario para estarem na fila da comida, apanharam 2 ou 3 três transportes para virem ao centro, vieram com os filhos nos braços.

Eu que pensava que estava a dar tanto, de repente percebi que a meia dúzia de coisas que tinha não chegava para tanta gente. E eu queria ajudar toda aquela gente.

Sinceramente penso que qualquer pessoa com dois dedos de testa se sensibiliza face a uma situação destas, mas depois de ser mãe, isto teve um impacto astronómico em mim.

Por isso escrevo este post, para dar voz a estas pessoas que têm muito menos e não podem comprar “o básico” para dar aos seus filhos.
Porque nós temos demasiadas coisas, e porque às vezes passar para uma amiga que também pode comprar, ou vender nas plataformas on-line, não precisa de ser a primeira opção.

Podemos dar diretamente a quem tem menos, sem ONGs, igrejas e associações, sem filtros nem triagens, olhos nos olhos, a entregar em mãos.

Olhar para aquelas mães com os filhos nos braços, totalmente agradecidas pela oferta que recebiam, a louvar a deus pela sorte que tiveram; fez-me sentir vergonha do tanto que já desperdicei do mais alto do meu privilégio. Vergonha da inconsciência e da indiferença com que nos habituamos a viver, só porque aleatoriamente não nos calhou a nós viver aquela realidade.


*As redes sociais também servem para fazer serviço social. Olhar à nossa volta, contactar sem medo, ouvir as necessidades dos outros e ajudar dentro das nossas possibilidades.

*Estes grupos do Facebook: [No lo tiro, lo regalo ou Te lo regalo, no lo necesito], estão cheios de mensagens de gente que precisa de ajuda, mas felizmente também têm muitas pessoas a doar as coisas que já não lhes fazem falta. É um principio básico da humanidade, a solidariedade e a ínter-ajuda, não sei porque nos esquecemos tanto disto.

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